Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

A Imagem: A Intersecção, #2
A Imagem: A Intersecção, #2
A Imagem: A Intersecção, #2
Ebook735 pages7 hours

A Imagem: A Intersecção, #2

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

O PASSADO NUNCA DESAPARECE

 

Após vários anos de fuga, Lucas chega à vila da Moita, onde acredita que poderá começar a viver uma vida nova. Mas a sua chegada é aguardada por um homem que conhece bem os segredos do seu passado.

 

PORQUE NUNCA O ENFRENTAMOS

 

Para manter os seus segredos intactos, Lucas aceita trabalhar para o tal homem, acabando por ser cúmplice de actos bem mais hediondos do que aqueles que ele cometera.

O seu pesadelo parece destinado a não ter fim, até descobrir uma estranha imagem que o força a olhar para si mesmo e a enfrentar de vez os seus medos.

 

COM MEDO DAS CONSEQUÊNCIAS

 

Ao procurar algo que possa usar contra o homem que o controla, Lucas descobre que tem o dom de reescrever o seu passado. Levado pelo impulso, Lucas decide introduzir uma ligeira modificação, mas depressa descobre que manipular o passado é mais perigoso do que tentar apagá-lo da memória.

LanguagePortuguês
PublisherJoel G. Gomes
Release dateApr 17, 2016
ISBN9781516315819
A Imagem: A Intersecção, #2
Author

Joel G. Gomes

Joel G. Gomes é o autor da espectacular série literária O MAL HUMANO, dos fantásticos romances UM CAPPUCCINO VERMELHO e A IMAGEM, bem como de outras incríveis histórias. (É também quem escreveu o parágrafo anterior, logo pode ter havido um ou outro exagero.) Vive na companhia da sua querida esposa e três adoráveis gatos. Junte-se à sua mailing-list (via https://tinyletter.com/joelggomes) para ter acesso a conteúdos exclusivos, cupões de desconto e outras benesses. Também assina como Ricardo L. Neves e João Dias Martins.

Read more from Joel G. Gomes

Related to A Imagem

Titles in the series (3)

View More

Related ebooks

General Fiction For You

View More

Related articles

Reviews for A Imagem

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    A Imagem - Joel G. Gomes

    Joel G. Gomes

    A IMAGEM

    LIVRO 2 DA SÉRIE LITERÁRIA

    A INTERSECÇÃO

    UM ROMANCE SOBRE VIDAS MANIPULADAS, PASSADOS ALTERADOS E UMA AMBIÇÃO INFINITA

    Edição Ilustrada

    Draft2Digital

    2020

    O PASSADO NUNCA DESAPARECE

    Após vários anos de fuga, Lucas chega à vila da Moita, onde acredita que poderá começar a viver uma vida nova. Mas a sua chegada é aguardada por um homem que conhece bem os segredos do seu passado.

    PORQUE NUNCA O ENFRENTAMOS

    Para manter os seus segredos intactos, Lucas aceita trabalhar para o tal homem, acabando por ser cúmplice de actos bem mais hediondos do que aqueles que ele cometera.

    O seu pesadelo parece destinado a não ter fim, até descobrir uma estranha imagem que o força a olhar para si mesmo e a enfrentar de vez os seus medos.

    COM MEDO DAS CONSEQUÊNCIAS

    Ao procurar algo que possa usar contra o homem que o controla, Lucas descobre que tem o dom de reescrever o seu passado. Levado pelo impulso, Lucas decide introduzir uma ligeira modificação, mas depressa descobre que manipular o passado é mais perigoso do que tentar apagá-lo da memória.

    JOEL G. GOMES É ALGUÉM que se refere a si mesmo na terceira pessoa quando tem de escrever notas biográficas como esta. Quando não está a inventar factos sobre a sua pessoa, escreve histórias sobre coisas que podiam muito bem ter acontecido, vê séries com a esposa, brinca com os seus três gatos e faz outras coisas.

    Para saber mais sobre o autor e as histórias por detrás das histórias, clique na imagem abaixo para visitar a sua página oficial, onde poderá aderir à sua mailing-list e ter acesso a conteúdos inéditos e exclusivos.

    jgg banner

    O AUTOR AUTORIZA A publicação desta obra neste sítio e demais plataformas associadas.

    Esta história também está disponível em suporte físico. Clique aqui para adquirir o seu exemplar.

    © 2020, JOEL G. GOMES

    Capa: (C) a partir de criação original de Green-imagjn’

    Fotos: produzidas pelo autor ou obtidas com permissão em www.pexels.com

    OBRAS PUBLICADAS

    - A INTERSECÇÃO

    UM CAPPUCCINO VERMELHO

    A IMAGEM

    O ATRASO

    - O MAL HUMANO TEMPORADA ZERO

    EPISÓDIO 0 - A ARCA

    EPISÓDIO 1 - SELECÇÃO

    EPISÓDIO 2 - APREENSÃO

    EPISÓDIO 3 - CONTENÇÃO

    EPISÓDIO 4 - ACEITAÇÃO

    EPISÓDIO 5 - DEFLAGRAÇÃO

    - CONTOS

    À HÓME!

    A PRIMEIRA MIÇSSÃO

    A SOPA

    ... havia ainda objecções por levantar? Havia-as com certeza. A lógica é na verdade inabalável, mas não resiste a um homem que quer viver. Onde estava o juiz? Onde estava o supremo tribunal? Tenho coisas a dizer. Ergo as mãos.

    O Processo (frases cortadas do texto original),

    Franz Kafka

    Em baixo ficava o mundo da morte, o mundo imutável da causa-e-efeito, do demoníaco. A um nível médio estendia-se a zona humana, mas a qualquer momento um homem poderia mergulhar – descer como se se afundasse – na zona infernal que ficava por baixo. Ou: ele podia ascender ao mundo etéreo que ficava por cima, o que constituía a terceira das camadas trinatárias.

    Os Três Estigmas de Palmer Eldritch,

    Philip K. Dick

    Nasceste de um pai. Não tens mãe. A dor que sentes é a dor da falta, não a dor da perda. O que tu pensas recuperar na minha pessoa, na realidade nunca possuíste.

    A Ilha,

    J. M. Coetze

    PREFÁCIO

    DIZ-SE QUE AS IMAGENS encerram as palavras aos milhares, mas é óbvio para quem ler a presente obra de Joel Gomes que – não obstante as centenas de páginas de densidade narrativa – a história não se deixa dominar por limites tão básicos nem se rende ao território da mancha gráfica, das explicações pueris, da interpretação imediata. É uma história com um passado, que encontramos em media res, e traz bagagem consigo. É uma história familiar para o autor: percebe-se que já aqui esteve, já viu as tramas acontecerem, trata as personagens pelo nome, sabe o relacionamento das ruas, usa relógio e calendário – se nos informa sobre o tempo e o espaço com uma precisão teutónica, é porque tenciona mostrar-nos que acontece aqui ao lado, que basta virar a cara ou entrar no café para ouvirmos os diálogos surgirem entrecortados pelo ruído do quotidiano, qual intrusão de um Fantástico que, outrora, se atribuía a interpretações mais religiosas; mas há mais que o autor quer dizer, sobre a apropriação de locais lusitanos para a construção deste género literário, os tais locais menos nobres, esquecidos dos orçamentos públicos, desconsiderados pelos planos municipais, essas freguesias suburbanas que uma narrativa do Fantástico (na prática de outros autores) jamais seria apanhada a frequentar. É uma história que talvez se perpetue, acabando com um traço de mistério e ameaça de repercussões insuspeitas – mas mais não digo, que a história, para vocês, ainda não aconteceu.

    Nela, vários atributos agradam e causam frustração. Joel confia na capacidade dos leitores, o que significa que não lhes dá a mão quando o terreno fica agreste ou escorregadio. Quem persevera, no entanto, é recompensado, embora nem sempre chegue ao destino incólume (mas quem é que gosta de aventuras confortáveis?). Também aqui se percebe uma dimensão incomum aos jovens autores (categoria a que, para o bem e para o mal, Joel está por ora condenado a pertencer até que o tempo se encarregue de libertá-lo), uma intenção meta-literária que antecipa na escrita a sua própria leitura. Ainda que por força das circunstâncias narrativas, o romance opte por abrir a caixa na qual o gato aguarda o seu destino, e assim colapse ante o peso das possibilidades que fez adivinhar, permanece durante um longo instante a interpretação invulgar de estarmos na presença da história que adormece, e que, adormecendo, sonha com a sua própria natureza.

    É aqui que nos apercebemos como é raro encontrar ficções habitadas por outras ficções com a naturalidade que se vê neste mundo a que chamamos de real. Mas não assistirão as nossas personagens a novelas, não precisarão também de leitura de entretenimento, de escapismo cultural, de ópera e filmes e espectáculos? Porque damos importância apenas aos enredos que distam do nosso mundo num grau de separação? Porque não é igualmente importante o enredo de um romance que a nossa personagem esteja a ler – de uma série que esteja a assistir? A questão é imediata: não serão todas elas personagens, todas elas ficções segundo a nossa perspectiva? Contudo, isso não acontece. Quanto mais afastado se encontra o universo inventado daquele em que habitamos, menos interesse lhe presta o leitor. O autor hábil utiliza este recurso para sobrepor camadas, construir perspectivas como se faz nos filmes em 3D: contrapondo histórias mais inventadas por detrás de uma mais verdadeira, aproxima esta de nós. Outros autores – talvez ainda mais hábeis – percebem que todas as histórias são igualmente verdadeiras, e são capazes de mostrar-nos como chegar a essa conclusão.

    Eis um percurso que, acredito, irão gostar de fazer. E, como disse, tem partida aqui ao lado.

    Luis Filipe Silva

    Setembro de 2014

    ANTES DE

    OLÁ. SE NÃO TE IMPORTAS, vou tratar-te por tu, pode ser? Se fores algum dignitário da nação posso tratar-te de modo mais formal, se fizeres mesmo muita questão nisso. Em público, claro. Aqui, que não há ninguém a ver, permite-me a ousadia. Não te preocupes que não vou demorar muito tempo. São só algumas palavrinhas sobre o livro que acabaste de adquirir (ou que alguém te ofereceu – não esqueças de agradecer, está bem?), vais ver que não demora nada.

    As primeiras páginas de «A Imagem» foram escritas no fim de tarde de 18 de Maio de 2009, mal cheguei a casa do trabalho. Durante o percurso passara por um muro branco que me despertara a seguinte ideia: e se de repente aparecesse ali uma imagem, que só uma pessoa no mundo podia ver? Mas que imagem? Que pessoa? E porquê só ela? Foi para encontrar a resposta a essas (e, mais tarde, outras) perguntas que comecei a escrever esta história.

    Repara que eu fazia o mesmo percurso todos os dias (quase todos os dias – ao fim-de-semana era para descansar), já passara por aquele muro milhentas de vezes. Porque é que a inspiração não me assoprou ao ouvido mais cedo? Talvez porque as coisas acontecem mais quando têm de acontecer do que quando nós queremos. Ou precisamos.

    Não sou grande crente nessa coisa do Destino, mas também não creio que tudo dependa de nós. (O nós aqui é individual e não colectivo, apesar da contradição de concordância.) Digamos que olho para o mundo como uma teia de ligações e acções. Somos senhores da nossa vontade, mas a nossa vontade não é absoluta nem imune a vontades alheias.

    Em «Um Cappuccino Vermelho» explorei, em parte, o conflito destino versus vontade própria. João Dias Martins, um dos protagonistas desse livro, descobre que há pessoas a morrer de forma idêntica à que ele escreve no seu romance. João não sabe se é ele que causa essas mortes ou se apenas as narra. O desejo de saber a verdade transforma-se em conhecimento e este acaba por corrompê-lo.

    O caso de Ricardo Neves, o tal que anda a matar as vítimas de João, não é muito diferente. Embora (quase sempre) senhor da sua vontade e do seu destino, deixa que este seja influenciado por razões com as quais nem sempre concorda, mas que nunca rejeita.

    Em «A Imagem» o tema predominante é a redenção. Não comecei a escrever a história com esse ou qualquer outro tema em mente. Apenas calhou.

    Lucas, o protagonista desta história, é um jovem com um passado violento, alguém que num momento de irreflexão cometeu um acto irremediável. Em vez de assumir esse erro, resolve fugir dele e a sua vida torna-se uma sequência errática de rostos e lugares. A sua vida antes não era um paraíso, mas era bem melhor do que estar sempre em fuga, sem lar, sempre a olhar para o passado, indeciso entre parar e voltar atrás.

    Todos nós já metemos a pata na poça. Nem tu, nem eu, nem ninguém, é excepção. O Lucas não tem problema nenhum em admitir que cometeu um erro; se houvesse como, está disposto a fazer o que for preciso para se redimir. O problema é que há erros, como o dele, que não têm solução. No mundo de Lucas não se pode voltar atrás no tempo, não se trazer os mortos de volta à vida. Ou pode?

    «A Imagem» é uma história de situações impossíveis, de sonhos roubados e memórias desaparecidas. É uma história de encontros e reencontros. É uma história de sacrifício e luta e é também, sobretudo, uma história de redenção, de busca por um perdão que se quer mas que não se aceita.

    A 18 de Maio de 2009, quando comecei a escrever «A Imagem», não fazia ideia de que viria a ser uma sequela. A 23 de Março de 2012, dia do lançamento de «Um Cappuccino Vermelho», já tinha isso como facto consumado. (Como não há duas sem três, nessa mesma noite alguém transformou isto numa trilogia. Meses depois, eu acrescentei um quarto volume. E ficamos por aqui.)

    Foram cinco anos até chegar aqui. Cinco anos desde que imaginei uma imagem no muro até à escrita desta introdução. A quantidade de revisões e versões que isto teve foi extenuante, embora tenham sido um mal necessário.

    Na altura irritei-me comigo mesmo pela demora, hoje estou contente por não ter publicado isto quando queria. É claro que vai haver muita gente a procurar (a a encontrar) falhas na história, nos personagens, uma vírgula fora do sítio, um acento mal colocado. Estou preparado para tudo isso porque estou satisfeito com o que fiz, embora tenha consciência de que podia ter feito sempre melhor.

    Penso que disse tudo. Quando quiseres, podes começar. Só preciso que depois me digas se gostaste ou não. (A seguir à história tens um endereço email para onde podes enviar a tua opinião. Mesmo que não gostes, faz-me esse favor, sim?)

    Última nota (e passamos já à história, prometo): as histórias dos próximos dois volumes, «A Voz» e «O Quarto Vazio» já estão a ser trabalhadas. Não vale a pena perguntares-me quando é que estarão prontas porque ainda não sei, mas posso adiantar isto: ainda há muito terreno por desbravar. Espero que continues comigo até lá. Da minha parte, tudo farei para que nada se repita e tudo seja novo. E interessante, claro.

    Agora sim, podes começar.

    Joel G. Gomes

    Évora, 1 de Setembro de 2014

    G:\A Imagem - promos\Muro\maquete moita1.jpg

    A ACÇÃO PRINCIPAL DESTA história decorre no Verão de 2009.

    Nem tudo o que é aqui descrito aconteceu mesmo.

    SÓ ALGUMAS COISAS.

    1

    Baixa da Banheira 2018-06 (11)

    OS MORTOS NÃO VOLTAM, mas continuam a assombrar os vivos. Lucas sabia isso melhor que ninguém. Era esse um dos porquês de ter abandonado a sua terra e partido para longe. Obrigado a ser discreto pelos segredos que o acompanhavam, não reparava nos pormenores que compunham o quadro geral à sua volta. Tinha mais em que pensar. Ou tentar não pensar.

    Chegara à vila da Moita há quase um ano. Usava cabelo curto, quase rapado, e uma barba cerrada que lhe cobria uma boa parte do rosto. Nos bolsos das calças trazia duas chaves, um pacote de lenços de papel e alguns trocos. No pulso direito, um relógio sem hora certa servia para cobrir uma cicatriz.

    A sua aparência de vida pacata e reservada escondia o desejo de não ter nada a esconder. À semelhança dos sítios por onde passava, Lucas era alguém em quem se reparava, mas não a ponto de se poder fornecer uma descrição detalhada.

    Todos os dias passava por uma moradia que fazia esquina com um pequeno jardim onde velhos e novos se entretinham com jogos tradicionais e conversa mais ou menos fiada. A fachada da moradia apresentava uma extensa parede branca pichada de protestos sociais – nada que justificasse um segundo olhar.

    Até ao dia em que a parede deixou de ser branca.

    A mudança que havia ocorrido naquela parede desde o dia anterior era impossível de ignorar. Onde antes estavam insultos e recomendações sociopolíticas, estava agora uma imagem bizarra: uma figueira morta, despida de folhas, plantada num solo árido e arenoso. A desolação terrestre fazia contraste com um maravilhoso céu azul, onde o Sol brilhava com fulgor e pássaros esvoaçavam.

    Enfrentou a imagem por um minuto de eternidade. Sentia-se preso àquela representação e não percebia o porquê disso. Nem tão pouco se queria mesmo perceber.

    O Verão chegara no dia anterior, mas o calor já ali estava há mais tempo. Ainda não eram nove da manhã e já parecia meio-dia. Talvez fosse o calor.

    Sentiu uma ligeira tontura e notou algo mudar na composição da imagem. Fechou os olhos e levou as mãos à cabeça. O sol estava demasiado quente e os pesadelos que tivera na noite anterior não o tinham deixado dormir nada de jeito. Já estava a olhar para ali há demasiado tempo. Deviam existir várias explicações possíveis para o que julgava ter visto, mas não conseguia pensar em nenhuma.

    Abriu os olhos e o movimento que a sua ilusão fabricara retomou, como se as alterações só acontecessem quando observadas por ele.

    Os pássaros voaram do céu azul e belo para os ramos da árvore morta. Ao pousarem lá, carne, penas e órgãos escorriam para o solo, transformando-os em pequenos esqueletos chilreantes.

    Voltou a fechar os olhos. Quando os abriu, esperava ver a parede de novo branca ou, pelo menos, a imagem tal e qual ele a vira pela primeira vez. Em vez disso, viu mais outra mudança.

    Ao lado da figueira morta estava uma figura envergando um hábito castanho, a apontar para ele. O aspecto putrefacto dos seus dedos causou-lhe bastante perturbação, embora não tanta quanto a presença de uma cicatriz no pulso idêntica à sua.

    Deu dois passos atrás e chocou com um homem que ia passar. Recompôs-se e afastou-se dali o mais depressa que as suas pernas lhe permitiam. Teve a sensação que alguém chamava por ele, mas fez de conta que não ouviu. Devia ser impressão sua. E mesmo que não fosse, não conseguia reunir a coragem para olhar para trás – apenas para seguir em frente. Para longe, para bem longe daquela imagem. Que não existia. A imagem não existia. Forçou-se a acreditar nisso. Não vira nada, não ouvira nada. Só lhe interessava afastar-se dali o quanto antes. Afastar-se do sentimento de culpa que aquela imagem havia despertado e que ameaçava revolver-lhe as entranhas. A culpa que sentia todos os dias ao acordar e que não conseguia ignorar, por muito que tentasse.

    Bloqueando o mundo à sua volta, seguiu em direcção ao jardim e, em vez de virar à direita, continuou em frente, atravessou o jardim, e entrou no primeiro café que encontrou.

    Sentou-se numa mesa ao acaso e pegou num jornal que alguém havia lá deixado. Olhou pelas manchetes, tentando esquecer o que acabara de ver.

    Passou um minuto até alguém vir ter com ele e perguntar-lhe o que é que ele iria tomar.

    Uma água das pedras, por favor, pediu.

    Lucas deu pelo empregado afastar-se, embora a sua atenção continuasse focada no jornal. A acreditar nas notícias que lá vinham impressas, o mundo não parecia ter mudado muito desde o dia anterior. Não se tinham verificado fenómenos climatéricos bizarros, ou pessoas a voar pelos ares, nem o planeta fora invadido por uma frota alienígena em busca de pechisbeques.

    De Domingo, 21 de Junho, para Segunda-feira, 22 de Junho de 2009, o mundo onde Lucas vivia parecia estar na mesma. Só que não estava, e ele sabia disso. Ou, se não sabia, sentia que algo no seu âmago havia mudado para sempre. O mundo onde ele se encontrava naquele momento, apesar da ausência de evidências que corroborassem essa sensação, não era o mesmo mundo onde vivera os primeiros vinte e três anos da sua vida. Não podia ser. No seu mundo, encerrado poucos minutos antes, imagens não surgiam em paredes da noite para o dia. Muito menos imagens vivas com representantes da morte envergando o seu rosto apontando dedos putrefactos na sua direcção.

    Por instantes pensou que talvez não fosse o mundo que estivesse diferente. Talvez fosse só ele. Esse pensamento durou pouco tempo, já que se não tinha nenhuma razão em particular para considerar a primeira hipótese, aquela outra muito menos.

    O empregado trouxe a água e um copo. Lucas esperou que ele se afastasse um pouco e só depois abriu a garrafa. Um pouco mais calmo, embora não refeito do que presenciara instantes antes, verteu água em quantidade suficiente para encher meio copo. Bebeu dois golos e suspirou, libertando o ar que não dera conta de estar a suster.

    Os seus pensamentos foram de novo atraídos para a tal imagem. Não o queria fazer – queria que a imagem e a sua lembrança desaparecessem – porém, tinha consciência de que a única maneira de compreender o significado de tudo aquilo era através de um confronto directo. A imagem inicial e a estranha metamorfose que nela se havia operado tinham-no assustado. No entanto, aquilo que o assustara mesmo fora os sentimentos de culpa, remorso e familiaridade que ela lhe provocara. Algo que ia muito para além da ilusão de ter visto uma cicatriz igual à sua.

    Supondo que a ilusão de movimento havia sido apenas isso, supondo que quem a desenhara demorara o tempo necessário para desenhar uma imagem daquela dimensão, mesmo assim, mesmo assim, aquela composição continuava a assustá-lo. Só de pensar nela sentia medo. Pânico. Horror. Um sem fim de sentimentos negativos que não conseguia nomear e que lhe causavam arrepios no estômago, suores frios e uma vontade quase irresistível de voltar para casa e esconder-se debaixo da cama, para o bicho-papão não o apanhar. O problema era que ele não tinha como, nem para onde fugir. Não que ele achasse a fuga impossível, apenas aquilo de que mais queria fugir era de si mesmo.

    Verteu o resto da garrafa para dentro do copo – o gás dissipara-se entretanto e a água das pedras já mais parecia água da torneira, quente – e bebeu tudo de uma só vez. Olhou para o jornal e pensou nas duas hipóteses de que dispunha. A primeira era sair dali, voltar atrás, passar em frente à tal parede e confirmar que tudo não passara de uma ilusão. Uma ilusão causada pelo sol, pelo cansaço, pelo stress, ou por qualquer outro motivo sustentado por factos científicos que explicasse ver imagens numa parede a ganhar vida, mas, ainda assim, uma ilusão. A segunda era sair dali e ir para onde era suposto. Apesar de odiar o que fazia, naquele momento parecia-lhe a melhor de duas opções más. Ambas as hipóteses partilhavam do mesmo princípio activo: sair dali.

    Ainda sem saber o que fazer, levantou-se, foi até ao balcão pagar a água e saiu do café.

    Do outro lado da estrada, no jardim, miúdos e graúdos continuavam entretidos. Seguindo em frente, voltaria à parede, à imagem, àquilo que o obrigara a quebrar a rotina. Pela esquerda retomaria o seu percurso diário.

    Lucas estava ciente de que a sua decisão partia de uma suposição que podia não estar certa: a de que a imagem permanecera inalterada. Não queria entreter a hipótese de tudo não passar de um instante de efémera loucura. Não queria pensar que podia estar a enlouquecer e a não dar por isso. Recordava-se de ter lido que uma pessoa quando enlouquecia não se apercebia. A mente humana conseguia adaptar-se ao bizarro e ao absurdo, revestindo-os de uma lógica, em muitos sentidos, irrefutável. Se ele estivesse louco, conseguiria sabê-lo? Seria a simples consideração dessa hipótese suficiente para torná-la possível ou impossível?

    Lucas tomou a sua decisão e seguiu caminho.

    Estava na Moita há mais de um ano e ainda não conhecia ninguém, assim como ninguém o conhecia a ele. Tinha perfeita noção de que as circunstâncias iniciais que rodeavam a sua chegada àquela vila não eram as incentivadoras à criação de laços de amizade. A sua esperança era que as coisas melhorassem com o passar do tempo. Ao invés, só pioraram.

    Chegara ali para escapar a algo mau e acabara envolvido em algo muito pior. À excepção de um breve período todas as manhãs, era livre de ir e fazer o que quisesse. Tinha total liberdade de movimentos, mas sentia-se manipulado a todo o instante. Talvez porque essa manipulação não era só uma sensação.

    Não sabia quase nada sobre a pessoa para quem se vira forçado a trabalhar, a não ser que era um homem de grande poder e influência que prezava ao máximo a sua privacidade. O que descrevia grande parte das pessoas poderosas e influentes, assim como uma porção significativa das que não eram nem uma coisa nem outra.

    Entendia que era perigoso, tanto para si como para outros, permitir que um estranho passasse a ser um conhecido, ou mesmo um amigo. Porque os amigos, às vezes até os conhecidos, partilhavam segredos. E mesmo que não partilhassem, mesmo que conversassem só sobre banalidades, esse era um risco que ele não podia correr. Era por essa razão que não conhecia ninguém.

    Apesar disso, Lucas não era um bicho solitário. Nem sempre. Havia alturas em que gostava de se sentir integrado, de fazer parte de um ambiente tão familiar quanto possível. No café onde ia todas as manhãs, por volta das 8h45, ninguém sabia quem ele era, de onde vinha ou o que fazia – o máximo que podiam saber era que passava lá sempre para tomar a sua bica.

    Naquela manhã, atrasado como estava, decidiu que não iria parar lá. Assim que tomou essa decisão, o sino da Igreja tocou. Lucas tinha o seu relógio dois minutos adiantado para evitar atrasos, ideia que naquela manhã não estava a correr muito bem. Apressou o passo, virou à esquerda e seguiu em frente até à Avenida Principal. Subiu até à Praça de Touros e virou na primeira à esquerda.

    Em dias normais, faria aquele trajecto num passo rápido, porém discreto. Desta vez, pouco faltava para começar a correr. Só não o fazia porque não queria chamar a atenção. Já chegava o que acontecera ao presenciar a imagem.

    A lembrança inesperada e indesejada fez aumentar o já acelerado palpitar do seu coração e o suor que lhe escorria pela testa. Manteve o seu passo um pouco mais rápido – mas não muito mais – do que o habitual. As suas feições eram o emblema da neutralidade, pronto a sorrir ou a acenar sempre que tal se justificasse.

    Quando chegou ao seu destino olhou bem em redor antes de entrar. Não sabia do que estava à procura, ou sequer se havia algo ali para procurar. Sabia que nunca havia chegado ali àquela hora e, como tal, achou por bem olhar.

    Vista de fora a pequena casa parecia ter um único piso. Era branca, antiga e comum. Comum ao ponto de ninguém dar conta que ela lá estava. Era uma casa abandonada, não pelos seus residentes, mas pela própria vila que a albergava. Era uma casa ignorada, esquecida. De janelas sempre fechadas. Sem luz.

    Satisfeito por não ver nada que lhe despertasse a atenção, Lucas tirou uma das duas chaves que trazia no bolso e inseriu-a na fechadura. A porta rangeu quando a empurrou, como se não fosse aberta há anos. Deu uma última olhada para a rua e, não vendo ninguém por perto, entrou e fechou a porta. Por breves momentos, pensou no que poderia fazer caso alguém o tivesse visto entrar na casa e não gostou das hipóteses ao seu dispôr. Muito menos das consequências para si, caso não soubesse lidar com a situação.

    O quadro da electricidade estava ao lado da porta. Lucas abriu-o e ligou o interruptor geral. A luz veio e com um piscar rápido limpou de vez a escuridão. Por dentro, estava imaculada e vazia. Era constituída apenas por duas divisões: as paredes interiores – à excepção de um dos cantos – tinham sido retiradas.

    Por momentos que lhe pareceram breves, deu-se ao luxo de deixar a sua mente vaguear um pouco. Continuava a pensar naquela imagem e no seu possível significado. O medo que sentira ao vê-la dissipara-se um pouco, mas não a sensação de que ela estava relacionada com algo do seu passado.

    E, por tudo isso, ele esforçou-se por não pensar no quão simples era a sua vida antes daquela sucessão de eventos, cada um mais terrível que o outro, que o levara fugir de terras a norte de Lisboa. Muito mais a norte. Um acto irreflectido que o obrigara a um recomeço forçado, seguido de um longo período de constantes mudanças. Uma vida instável sem sítio a que pudesse chamar lar. Não queria pensar nisso. Queria esquecer o passado porque continuar a lembrar em nada ajudá-lo-ia a resolver os problemas que tinha.

    Durante os últimos seis anos, Lucas esforçara-se para esquecer o seu passado. Julgava que nunca mais iria sentir algo tão mau quanto a indisposição que o atacara naquela noite, mas estava enganado. Aquela imagem, que teimava em não deixá-lo em paz, começava a provocar-lhe um latejar na cabeça. Um eco constante que teimava em não parar. Fez o que pôde para se manter controlado, mas foi em vão. Os primeiros pingos de sangue começaram a escorrer-lhe do nariz e ele não teve como impedir o fluxo que se seguiu.

    Correu para a casa de banho e abriu a torneira do lavatório. Lavou bem as mãos com água fria e olhou-se no espelho. Estava pálido e com os olhos raiados de sangue. O nariz ainda não parara de sangrar, mas estava bem melhor. Ao lado do lavatório estava um toalheiro de papel – habitual em cafés e restaurantes, mas não numa casa normal. Rasgou um pedaço bem grande, dobrou-o e usou-o para estancar o sangue.

    A casa de banho não tinha porta. A entrada era lateral e estava separada da divisão principal por uma parede erguida a uma distância apenas larga para permitir a passagem. A uniformidade da cor, bem como a luz e o paralelismo duma parede sobre a outra, camuflavam a passagem.

    Entre a retrete e o lavatório estava um tapete branco. Lucas desviou-o com o pé e agachou-se para abrir o alçapão que estava por baixo. As luzes de presença já estavam acesas. Apoiando-se na parede, desceu aquele lance de escadas com cuidado. Fazia falta ali um corrimão. Sentia-se tonto devido à perda de sangue e não queria arriscar uma queda.

    Uma lâmpada de 40W mal direcionada providenciava a única luz no local. Como se sanguessugas fossem, as paredes negras absorviam quase toda a luz, deixando restos que só permitiam distinguir formas e vultos.

    Tinha de se despachar para tentar compensar o atraso. Não que tivesse um horário rígido a cumprir. Era só porque quanto mais cedo se despachasse, mais cedo poderia sair dali. Olhou em volta, assegurando-se de que tudo estava tal como ele havia deixado. O tripé estava montado e o cartão da câmara tinha ainda espaço para vinte fotografias, talvez vinte e quatro, se reduzisse a qualidade.

    Encostada à parede, estava uma mesa de madeira, pintada no mesmo tom das paredes. Em cima da mesa estava um portátil topo de gama. Carregou numa tecla ao acaso e aguardou que a sessão retomasse. A sessão reiniciou e quase de imediato surgiu uma janela no ecrã como uma mensagem: Estás atrasado.

    A mensagem tinha sido recebida às 9:02.

    Lucas pensou numa resposta, teclou-a e clicou em [enviar]. A resposta pareceu satisfazer quem estava do outro lado porque a discussão ficou por aí. Encostou-se à mesa, fechou os olhos e respirou fundo. Mais recomposto, afastou-se da mesa e olhou para a sua modelo, presa à parede no outro lado da divisão. Estava inconsciente. Talvez já estivesse morta. Com a porcaria de dia que estava a ter, não lhe admiraria nada. Aproximou-se dela e tocou-lhe ao de leve com a ponta do pé. Mergulhada no sono, ela reagiu com um despertar abrupto, mas depressa se acalmou.

    Lucas esforçou-se por olhá-la nos olhos. Estava a ter dificuldades em manter-se focado. Apesar da mordaça que a impedia de falar, o seu olhar não se coibia de lhe chamar nomes. Ao fim de duas semanas o receio nela dera lugar a uma cautela calculada. Recuou dois passos, jogou o toalhete ensanguentado para longe, posicionou a câmara e começou a disparar.

    Os flashes caíam como relâmpagos silenciosos naquela sala escura e desoladora. Ela tentou proteger os olhos do brilho, mas de resto manteve-se apática à situação. Parecia que a cada dia estava mais acostumada com a sua situação, como se a vontade de fugir, de ser livre, fosse roubada a cada disparo. De certo modo, Lucas achava que não eram muito diferentes. Eram ambos prisioneiros, talvez não da mesma forma, talvez em papéis opostos, mas eram parecidos o suficiente para que ele a conseguisse compreender. E era fácil compreendê-la, era fácil saber o que ela queria: que o seu sofrimento acabasse depressa.

    Ao fim de alguns disparos, pôs o tripé de lado e tirou as restantes fotos de diferentes ângulos. Não tinha pretensões de ser um grande fotógrafo. Tudo o que tinha a fazer era fotografar quem ali estivesse e enviar as fotos via email.

    Não sabia para quem fazia aquilo, nem tão pouco porquê. Quem quer que fosse, não só estava a par do que ele havia feito, como parecia não ter qualquer problema com isso. Na verdade, até parecia gostar desse aspecto sórdido que ele abrigava.

    Quando entrara na casa pela primeira vez, tinha à sua espera uma máquina fotográfica digital, um tripé, um portátil e instruções sobre o que fazer com as fotografias. O tema a fotografar, segundo as indicações, estava no piso inferior. Ao perceber o que era suposto fotografar, hesitou um pouco. Entre a sua segurança e liberdade e o sofrimento alheio, a escolha não foi muito demorada; o que não queria dizer que tivesse sido uma escolha fácil.

    Aquela miúda, da qual nem sabia o nome, era apenas mais um de muitos rostos que por ali tinham passado. Rostos em agonia, em sofrimento; expressões de raiva, confusão, medo e dor que ele capturara até ao suspiro final. Era essa a sua tarefa. Pior do que matá-los: era registar esse processo.

    Apesar de nunca lhe terem faltado momentos de remorso ou de arrependimento, estes nunca bastaram para convencê-lo a mudar de comportamento. Tentava não perder tempo a pensar como as coisas poderiam ser se ele tivesse agido de outra forma porque essa seria, era, uma tarefa inútil. O passado era o passado e não havia como mudá-lo. A única hipótese que ainda lhe restava era mudar o presente, mas essa era outra demanda que se tornava cada vez mais difícil a cada dia que passava.

    Fechado naquele piso inferior, numa casa que ninguém parecia notar, sentia-se cada vez mais atordoado. Se isso era pelos movimentos bruscos que fazia em busca de bons enquadramentos, ou da perda de sangue, ou das luzes, não sabia dizer. Tudo girava, como num carrossel gigante. Sentiu um líquido escorrer-lhe até aos lábios e percebeu que a queda de sangue voltara.

    Limpou os lábios com as costas da mão. Tirou um lenço de papel do bolso e apertou-o contra o orifício nasal. Apoiou-se na parede, desligou a máquina, removeu o cartão e colocou-a no chão junto do tripé. Inseriu o cartão de memória no portátil; da lista de opções que surgiu clicou em [enviar ficheiros por e-mail], seleccionou o destinatário e clicou em [enviar]. Aguardou que a operação concluísse e baixou a tampa do portátil.

    Com cuidado, subiu as escadas e regressou à casa de banho. Deitou o lenço ensopado na sanita. Era escusado puxar o autoclismo – a casa tinha luz, mas não água canalizada. Tirou uma boa quantidade de papel do toalheiro e estancou o sangue. Saiu para a divisão principal, parou junto do quadro da electricidade e desligou tudo. Abriu a porta da rua e saiu. Estava a chuviscar, apesar de os senhores do tempo terem previsto um dia de sol. Teve tempo de fechar a porta e de se afastar o suficiente para não o relacionarem com a casa.

    Depois disso, tudo ficou negro.

    2

    Alhos Vedros 2018-07 (12)

    EMBORA NÃO TIVESSE alterado qualquer palavra ao texto já existente, Ricardo Neves gravou o ficheiro antes de ir à cozinha beber água. Afastado das lides da vida pública, dedicava-se em exclusivo ao que poderia vir a ser um novo romance. Graças às receitas obtidas com o último trabalho que publicara, já lá iam mais de seis anos, bem como ao fundo deixado por Luís, seu amigo e mentor, podia dar-se ao luxo de só fazer o que lhe apetecesse. Dado o seu estado actual, preferia pensar assim. Era mais fácil convencer-se de que não fazia certas coisas por não lhe apetecer do que por não poder.

    Escrever era uma das coisas que lhe apetecia e que podia fazer. Se continuava a escrever, ou melhor, se voltara a escrever, era porque isso ainda lhe dava prazer. E também porque se sentia na obrigação de aproveitar ao máximo o tempo extra que lhe fora concedido. De momento, tinha apenas escrito perto de uma dezena de páginas. Ainda não tinha título, e o enredo estava pouco definido. Preferia escrever à medida que a história se deixava descobrir, parando aqui e ali para considerar que caminhos seguir.

    Chegando à cozinha, tirou um copo do armário, abriu a torneira, encheu-o até ao cimo e bebeu dois golos. Um dia antes da publicação do seu último romance, «Um Cappuccino Vermelho», Ricardo sofrera um acidente que o deixara preso a uma cadeira de rodas. Após ter consultado vários especialistas, a conclusão era sempre a de que não havia nada a fazer senão adaptar-se à sua nova condição. Resignado, fizera isso mesmo, remodelando a sua cozinha, bem como as restantes divisões da sua casa, de modo a que tudo estivesse ao seu alcance.

    Tentava não pensar muito no que já não podia fazer e concentrar-se no que poderia ainda alcançar com aquele seu novo trabalho, apesar de as ideias já não estarem a surgir com a mesma fluidez de outros tempos. Culpava a idade e o cansaço. Quanto à idade, nada a fazer; já o cansaço era outra questão. Conhecia-se bem o suficiente para saber que assim que encontrasse o elemento chave, o gatilho da história, não haveria cansaço que o parasse até ter um bom rascunho pronto.

    Rodou até à mesa da cozinha e deu mais um golo antes de pousar o copo ao lado do jornal do dia anterior. Pegou no periódico e folheou-o até à página 23. O artigo que encabeçava a página tinha como título DIAS DE POUCA MEMÓRIA e dava conta de um antigo gestor bancário envolvido em fraude. Contudo, a notícia que o levara a abrir o jornal vinha na coluna do lado e desta sobressaía um nome: Alexandre Figueira.

    Ricardo não queria pensar na sua vida anterior, mas aquela pequena notícia obrigava-o a fazer isso mesmo. Antes de ficar preso a uma cadeira de rodas, além de escritor de livros policiais, era também um assassino profissional. Sete anos antes passara por uma situação complicada que o levara a questionar algumas das suas opções de vida. Fora também nessa altura que cumprira o seu último contrato: uma lista de cinco pessoas a matar, na qual constava um Alexandre Figueira. Dos cinco nomes, localizara e matara três antes de os últimos dois terem desaparecido. Foi-lhe dito que Alexandre tinha sido morto. Nunca tivera razão para duvidar disso.

    Podia ser só uma coincidência de nomes, mas duvidava que assim fosse. O empresário que a notícia descrevia partilhava o mesmo nome e a posição de alguém que era suposto estar morto desde 2002. Se era ou não a mesma pessoa, isso era outra conversa.

    Bebeu o resto da água, colocou o copo dentro do lava-loiça e regressou ao escritório. Acedendo ao seu browser preferido, abriu a sua conta de email e solicitou informações sobre Alexandre Figueira.

    LUCAS ACORDOU COM UMA luz forte apontada para a sua pupila esquerda. Incomodado pela luminosidade, desviou a cara e tentou levantar-se do asfalto, para logo descobrir que já não estava na rua. As luzes brancas, o cheiro a éter, a aspereza do tecido onde repousava, eram sinais de que estava num hospital, mas eram também prova de que tinha feito uma pequena viagem sem dar conta. Para alguém que, mais do que apreciar, precisava de uma vida recatada e discreta, o mais possível afastada de incidentes, estar ali deitado não anunciava nada de bom.

    A primeira pergunta que lhe surgiu foi: quem o teria levado para ali? As hipóteses mais prováveis iam desde algum transeunte com tempo livre e vontade de ajudar, a pessoal dos Bombeiros Voluntários. Qualquer uma dessas duas hipóteses despertava outra questão: teria ele sido visto a sair da casa?

    Alarmado por esse pensamento e pelo que daí poderia resultar, olhou para os braços e viu que não havia nada a prendê-lo. Sorriu para dentro. Nesse momento, o médico, que parecia estar na sala há mais tempo do que ele tinha dado conta, abeirou-se da cama. Os instintos de sobrevivência que o tinham mantido a salvo durante tanto tempo entraram em acção. O médico trazia uma pasta na mão direita e uma lapiseira na esquerda. No cabelo escuro começava-se a notar uma orla no topo. Devia estar entre os quarenta e os cinquenta e, a não ser que planeasse agredi-lo com a pasta, não parecia constituir grande ameaça.

    Bom dia, disse o médico, num tom de voz que denotava fadiga. Como se sente?

    Cansado.

    Dói-lhe alguma coisa?

    Doer, não dói nada. Mas sinto-me dorido.

    O médico parecia tomar notas só por tomar. A cabeça dói?

    Um bocado.

    As perguntas continuaram. Lucas fez um esforço para responder a todas o melhor que conseguia, lutando contra o sono. Antes que desse por isso, já tinha cerrado as pálpebras e deixado levar-se pela escuridão.

    APÓS LONGOS DIAS DE cativeiro, o relógio interno de Nádia começara a

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1